Foi no segundo semestre de 1990 que a indústria nacional recebeu uma verdadeira revolução: foi liberada a importação de carros, e os "populares" com motores de até 1.0 litro teriam uma sensível redução nos impostos, tudo para agitar o mercado automotivo brasileiro. Nesse contexto, todas as fábricas do país queriam sair bem na foto, com produtos modernos, econômicos e de ótimo desempenho. Esse era o objetivo: fazer com que o consumidor comprasse carros de performance limitada pensando que estavam sentados em uma verdadeira Ferrari.
Nesse ponto, a primeira marca a lançar um modelo "mil" foi uma italiana, instalada em nosso parque industrial há pouco mais de uma década. O novo 1.0, lançado com alarde de ser o carro nacional mais barato da época (18% a menos que o segundo colocado), fazia com que o consumidor olhasse com carinho para aquele novo segmento de populares que estava surgindo.
A tal marca italiana já produzia o motor 1.0 para exportação e contava com o projeto do câmbio de quatro marchas (inclusive escalonamento), por isso, foi só juntar lé com cré, e o tal hatch "mil" já estaria pronto para ser vendido nas concessionárias. Mas, o tal motor não era "nenhuma Brastemp": apesar da concepção moderna, com comando de válvulas no cabeçote, era alimentado por um carburador de corpo simples, o que lhe garantia potência inferior aos 50 cv, com torque que não ia além dos 7,5 kgfm.
Mesmo que o carrinho fosse bastante leve, menos de 800 kg, afinal era "pelado", sabíamos que o desempenho não era seu forte. Ainda assim, além do preço, o foco estava no baixo consumo de combustível, já que ele se tornou o carro mais econômico do país logo que foi lançado.
Na época, eu era repórter da revista Quatro Rodas. Viajei até o local da fábrica da tal marca, fora do estado de São Paulo, onde o hatch popular me foi apresentado. Lá, ouvi um comentário interessante do então CEO da fábrica italiana: "faço um desafio a você: pode castigar esse carrinho o quanto quiser! Duvido que consiga quebrar alguma peça mecânica dele, é muito robusto. Só não vale bater em guias ou colidir com um poste!", finalizou, rindo.
O primeiro 1.0 era "cianeto" puro
Avaliei na época o nosso primeiro 1.0 da "nova era". Me pareceu bastante ágil para sua baixa potência, o que achei interessante. Cerca de um mês depois da tal viagem para conhecê-lo, recebemos uma unidade para teste completo. Logo levamos o "milzinho" para a pista, a fim de medir consumo, desempenho, frenagem, velocidade máxima e por aí vai. E esse carro que nos mandaram era um foguete! Como era possível, um 1.0 com menos de 50 cv, propiciar números de performance tão marcantes!
A partir dali, meu "desconfiômetro" passou a apitar no nível mais alto. Colhi os números de desempenho na pista, utilizando equipamentos eletrônicos caríssimos, de última geração na época. A Quatro Rodas tinha um "aparato" de testes tão bom quanto o das próprias fabricantes. De qualquer forma, na pista de testes em Limeira (SP), onde fazíamos todas as avaliações, o popular 1.0 conseguiu alcançar a velocidade máxima de um Ford Del Rey Ghia 1.6 e, na retomada de velocidade de 40 a 100 km/h, em última marcha, superou o resultado do Chevrolet Kaddet SL/E 1.8!
Alguma coisa não cheirava bem. E nessa altura do campeonato, eu sabia que a italianada tinha exagerado na dose do veneno naquele 1.0: ao invés de um "pequeno agrado" para que o carro mostrasse bons resultados nos nossos testes, passaram da conta, e quase o transformaram em um 1.6 ou 1.8, sem nada de popular.
Nesses casos, tínhamos como norma, dentro da revista, que, sem consultar a fábrica, desmontávamos motor, câmbio, seja lá o que fosse, para realizarmos uma inspeção técnica. E, de todos os carros testados, tínhamos o manual de manutenção completo, o mesmo utilizado nas concessionárias, com todas as informações para os mecânicos (como montar ou desmontar cada componente, número das peças, ilustrações e assim por diante).
Logo que voltamos da pista de testes, levamos aquele popular para a oficina que desmontava os carros de Longa Duração. Os técnicos foram minuciosos, seguindo todas as instruções do tal manual que tínhamos. No comando de válvulas, tudo de acordo, seja nas folgas ou número da peça. Os ressaltos dos cames, também. Fomos então medir a taxa de compressão daquele motor, para compará-la ao número oficial divulgado: 8,5:1, com tolerância de 0,2 para mais ou para menos.
Ou seja, eram toleráveis motores com até 8,7:1, ou com, pelo menos, 8,3:1. Algo totalmente normal nas mais diferentes marcas pelo mundo, vale falar, por conta das diferenças no processo de fundição e usinagem do cabeçote de cada motor. Mas, naquele carro do teste, encontramos 9,5:1!
Claro, essa taxa de compressão bem acima do normal, além de outras artimanhas encontradas (equalização do peso do conjunto pistões/biela, balanceamento dinâmico do virabrequim e volante do motor, vedação das válvulas de admissão e escape, equalização de câmaras de combustão e por aí vai) fizeram com que os 48 cv originais do motor de linha se transformassem facilmente em cerca de 60 cv. Número bastante "especial", bem distante daqueles obtidos pelos carros normais de produção em série. O motivo era claro: iludir o leitor da revista, para que ele pensasse que o 1.0 popular era tão rápido quanto um 1.6 ou 1.8 das outras marcas.
Também notamos diferenças positivas para o carro "envenenado" nas medições de consumo, embora menos gritantes que as de desempenho: ele bebia menos gasolina do que o normal, outra prova que ali havia algo errado.
Depois de constatarmos as "artimanhas", documentamos e fotografamos tudo, sem esquecer de nenhum detalhe. Remontamos o carro e o devolvemos para a fabricante, alegando que aquele estava fora das especificações oficiais. Como resposta, conseguimos uma das desculpas mais esfarrapadas que ouvi em todos os meus anos de vida: nos informaram que o veículo em questão tinha caído nas nossas mãos por engano, e que aquele era um protótipo da engenharia que fazia testes de desempenho. E, por um acaso, justamente aquele 1.0 poderoso da engenharia tinha vindo parar nos testes da maior revista automotiva da época.
Não sei o que seria pior: confirmar que modificaram o motor para que o carro fosse bem nos testes, ou contar essa história do protótipo de engenharia entregue para a imprensa por engano. Os dois motivos são péssimos
Tanto esses fatos são verdadeiros, que as unidades do tal carro 1.0 que recebemos para avaliações, comparativos e testes seguintes, eram muito mais lentas que aquela primeira: demoravam de quatro a cinco segundos a mais na prova de 0 a 100 km/h, e perdiam, pelo menos, 7 km/h de velocidade máxima. Esses sim eram carros normais, com desempenho real, igual aqueles que o consumidor encontrava nas concessionárias. Aquela primeira unidade testada tinha muito veneno, de fato.
Mas, você leitor, agora deve estar se perguntando: por que então não envenenar todos os carros de produção, para que eles fiquem tão bons quanto aquele testado? Na realidade, numa fábrica onde se produz mais de mil carros por dia, é humanamente impossível escolher peças e montar motores só com o que há de melhor. Eles custariam caríssimo, e a fábrica perderia muito. Por isso, nas linhas de montagens existem tolerâncias, para mais ou para menos, em todo o processo de produção.
As fábricas, de certa forma, trabalham de maneira aleatória com esses números de tolerância. Isso explica o motivo de às vezes existirem dois carros idênticos, com mesmo motor, câmbio, peso, potência e torque declarados, só que um é mais ágil e bom de guiar que o outro. Assim como nós humanos, é difícil encontrar dois carros 100% iguais: eles sempre vão mudar alguma coisinha, seja nos milímetros de vãos pela carroceria, numa taxa de compressão do motor, ou no peso de um conjunto pistões/bielas.
É como você comparar os engenheiros que saem de uma mesma sala de aula: todos cursaram a mesma coisa, alguns serão excepcionalmente bons, a maioria mediana e um ou outro, péssimo. Assim são os motores, mas não vale exagerar no veneno!