É enganoso um vídeo que compara o volume de água da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba em dois momentos distintos. O autor fez duas gravações no mesmo local na região de São José de Piranhas: agosto de 2022, com fluxo de água corrente, e 31 de março de 2023, com vazão menor. Ele diz que no ano passado "a água corria em abundância", mas que, em 31 de março deste ano, no governo Lula, "a água sumiu". As imagens foram feitas no trecho da Transposição que leva água até o reservatório Engenheiro Avidos. O reservatório está com capacidade reduzida para a realização de obras de reparo, de acordo com o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR). O fluxo de água da Transposição no local foi realmente interrompido, em 29 de março, para evitar o seu transbordamento.
O presidente da Comissão de Alocação de Recursos Hídricos São Gonçalo/Avidos, Valdeci Rodrigues de Araújo Filho, alega que a obra no que se chama comporta de fundo se iniciou na gestão passada. "Para o conserto dessa comporta, foi feita uma obra provisória chamada ensecadeira, para reter a água, e foi reduzida a capacidade do reservatório em mais da metade, chegando a 38%."
A Comissão diz que não há falta de água na região da Paraíba beneficiada pela Transposição, e sim excesso dela. Nos últimos dias deu-se início ao período chuvoso conhecido como quadra invernosa, que deve seguir até meados de abril.
O conteúdo ignora que a vazão no Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF) não é contínua. Cada Estado tem um calendário anual da quantidade de água desejada e os meses em que será liberada.
Comissão pediu controle na vazão de água em 28 de março
Sem o problema na comporta de fundo, o reservatório Engenheiro Avidos tem capacidade total para 293 milhões m³ de água. Com a redução para realização dos reparos, o nível não pode ultrapassar os 112 milhões m³. Caso isso ocorra, as águas que saem do Canal de Caiçara, onde foram feitas as imagens, passarão direto pelo reservatório Engenheiro Avidos, seguindo até o Açude São Gonçalo -- que já está cheio -- e de lá para o Rio Piranhas. O risco é de alagamento dos plantios dos ribeirinhos e as várzeas dos municípios de Sousa e Aparecida (PB).
Há também o risco de a água ultrapassar a ensecadeira e atrapalhar o conserto da comporta de fundo do reservatório Avidos. Foi por isso que, no dia 28 de março, a Comissão de Alocação de Recursos Hídricos São Gonçalo/Avidos pediu, em ofício à Coordenação de Marcos Regulatórios e Alocação de Água (Comar), ligada à Agência Nacional de Águas (ANA), que fosse feito um controle da vazão de água na região.
O pedido inicial, segundo Valdeci Rodrigues de Araújo Filho, era o fechamento das comportas de vertedouro do reservatório Engenheiro Avidos, justamente para evitar que a água que eventualmente transbordasse de lá alagasse as plantações dos ribeirinhos na sequência. Mas, por conta da ensecadeira instalada no local, o fechamento das comportas não foi possível. Então, a Comissão solicitou que fosse feita uma regulação nas válvulas em São Gonçalo, para que o reservatório fosse esvaziando aos poucos para suportar a chegada das chuvas da quadra invernosa, prevista para até 14 de abril.
Além da regulação das válvulas em São Gonçalo, foi interrompido o fluxo nas comportas do PISF de Caiçara, onde foi feito o vídeo, para evitar que ainda mais água chegue ao já quase cheio reservatório Engenheiro Avidos. "Com essa quadra invernosa, a água elevou e ficou faltando 25 centímetros para ela passar por cima da ensecadeira. Por isso, nós pedimos para fechar as comportas", acrescentou Francisco José Bernardino, que preside o Distrito do Perímetro Irrigado de São Gonçalo e também integra a Comissão de Alocação de Recursos Hídricos São Gonçalo/Avidos.
Fluxo foi retomado em 2 de abril com vazão reduzida
Bernardino disse que após pedir o fechamento das comportas em Caiçara/Avidos, peixes ficaram presos no local porque não conseguiam subir o fluxo dos rios para desova. O grupo fez um novo pedido à Agência Nacional de Águas: abrir as comportas de Caiçara à vazão de 0,2m³ por segundo para permitir que os peixes seguissem o fluxo para a desova.
Segundo o MIDR, o fluxo foi retomado no dia 2 de abril, a fim de manter a vazão sanitária. A situação é monitorada.
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O Estadão Verifica também conversou com um morador da região que confirmou que havia água correndo pelo canal que aparece no vídeo no último domingo, 2. Cristiano Andrade, piloto de drones da cidade de Cajazeiras (PB), distante 32 quilômetros de São José de Piranhas, disse que as comportas realmente foram fechadas, mas que havia água no local no domingo, quando ele esteve lá pela última vez.
Outro indício de que a água do Eixo Norte da Transposição não desapareceu, diferente do que diz o autor do vídeo verificado, é uma publicação de Cristiano feita no YouTube há um mês, exatamente no mesmo local, mostrando fluxo normal de água nos canais do lugar.
Vazão de água do PISF não é contínua
Desde o início deste ano, o Estadão Verifica desmentiu uma série de vídeos publicados nas redes sociais que alegavam que o governo Lula havia desligado o bombeamento de água da Transposição do São Francisco a fim de prejudicar a população. Boa parte dos vídeos não havia sequer sido feita em canais da Transposição. Já os que foram feitos lá ignoram que o fluxo de água do PISF não corre pelos canais o ano inteiro.
Cada Estado beneficiado pelas águas da Transposição envia anualmente à ANA um plano de gestão de águas. No Ceará, por exemplo, a vazão é solicitada apenas em período chuvoso, para facilitar o curso pelos canais e reduzir as perdas pela evaporação. Na Paraíba, no Canal de Caiçara, a vazão depende de sua finalidade.
"A oferta de água pelo PISF, determinada pela outorga, é intencionalmente flexível para harmonizar as necessidades da bacia doadora e otimizar, de modo adaptativo, as vazões disponíveis ao planejamento dos Estados, não havendo necessidade de bombeamento contínuo", disse o MIDR, em nota.
O Estadão Verifica não conseguiu identificar o homem que aparece nas imagens. O vídeo foi postado por um canal de outra pessoa, que vive em Alagoas, e não na Paraíba, e se identifica como apoiador de Jair Bolsonaro.
Da Redação com Estadão