Porque mulher não tem honra.
Lembro de Dilma Rousseff, sentada durante 12 horas e respondendo a cada um dos senadores raivosos que não faziam exatamente perguntas, apenas gritavam palavras de ordem nas quais ela era traidora, corrupta, manipuladora. Lembro da demissão de Soninha Francine, transmitida em vídeo pelo seu chefe, o então prefeito de São Paulo João Dória, que ainda a obrigou a ficar ali, de pé, ao seu lado, enquanto ele dizia para todos os eleitores que ela não era "dinâmica" o suficiente. E penso, mais que tudo, na ministra Rosa Weber.
Penso no rito de humilhação lento e silencioso ao qual Lula a tem submetido; Rosa, ao ver seus últimos dias na corte, tem que encarar o fato de que na sua cadeira se sentará um homem, mais um dentre os 168 ministros homens que já integraram o STF nos seus 132 anos de história.
Em um século e meio, foram apenas três mulheres ministras do STF.
Rosa tinha dito à imprensa que pretendia pautar o julgamento da descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de votação, para deixar registrado seu voto, como um dos dois membros integrantes da corte que tem um útero. Agora, os jornais publicam que talvez nem haja tempo para isso. Rosa então diz que pretende deixar seu voto registrado no plenário virtual, o que garantiria que ele conta. São as pequenas humilhações de Rosa, uma mulher que quer votar sobre o direito das mulheres ao seu corpo, sabendo que ela será a última durante décadas a sentar naquela cadeira e ter voz de decisão.
Uma mulher a menos.
Dentre todas as Cortes Superiores, são 90 ministros e apenas 17 mulheres. A única corte suprema que tem representação relativamente mais igualitária é o Tribunal Superior do Trabalho, onde dos 26 ministros, 7 são mulheres. No STF e STJ elas são 18%.
O pior de todos é o Superior Tribunal Militar (STM), que só tem uma mulher. A Ministra Elizabeth Rocha, que tem dado maior parte dos votos que valem a pena naquela corte, e quem me disse, numa longa entrevista, que ela se acostumou a ser o "voto vencido" dentre os colegas militares e os colegas civis – todos homens.
Elizabeth foi importante por exemplo para condenar a brutalidade com que os militares assassinaram o músico Evaldo Rosa diante da sua mulher e do seu filho, atirando pelo menos 62 tiros de fuzil no carro da família. Elizabeth viu como a viúva, Luciana Nogueira, encarou os soldados e não deixou eles se aproximarem da cena do crime, protegendo o nome e a reputação do marido, enquanto chorava dolorido diante das câmeras de TV. "A voz dela foi ouvida aqui no tribunal", me disse a ministra, que se diz feminista dentre a corte formada de homens fardados.
"Claro que tem sempre um ou outro que voce? percebe nitidamente a discriminac?a?o, mas eu relevei. Alias, eu relevei, na?o, eu enfrentei, porque eu acho que sa?o embates que todas nos, mulheres, enfrentamos.", ela me disse. "Isso na?o tem como fugir. Se voce? quer se projetar um pouco mais, se voce? busca uma ascensa?o profissional maior, se voce? faz escolhas tragicas para poder ascender profissionalmente, como eu fiz, abrindo ma?o da maternidade, na?o tem como fugir do embate."
Não sei se o embate vai resolver, mas talvez não haja outra saída.
Quando as jogadoras da federação de futebol espanhola decidiram pedir demissão coletivamente até que a direção fosse demitida, boa parte da sociedade abraçou o slogan "se acabou", um grito de revolta contra a dominação machista que não se importa em humilhar publicamente uma profissional no auge da sua carreira para saciar sua vontade e a vontade de outros homens.
Talvez seja a hora de retomarmos o antigo refrão feminista, ressignificado, para deixar claro para o homem que tem a caneta que não, não aceitamos nem uma mulher a menos na mais alta corte do país.
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