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Dança no São Pedro

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No dia 04/03/2024, a prefeitura de Fortaleza decidiu demolir o edifício São Pedro, que apresentava uma estrutura em estado irrecuperável. É de se lamentar que o edifício tenho sido deixado a tal grau de abandono e esquecimento, até chegar a esse ponto. Em 2021, numa viagem à Fortaleza, cidade onde morei por muitos anos, depois de uma caminhada na orla da Beira-Mar, onde está o São Pedro, e de ver um idoso caminhando com dificuldade utilizando botas ortopédicas, escrevi o conto "Dança no São Pedro", que resolvi resgatar em razão da ocasião e deixar aqui como uma homenagem e lembrança do histórico edifício da cidade, lamentando mais uma perda de uma cidade sem memória.

Pão sem gosto, servido sem manteiga mesmo. Poucas gotas de café reunidas, nem metade de uma xícara. Açúcar calculado por cristal. De brinde, algumas folhas e cereais. Tudo para que meu coração continue a bater e meu sangue corra sem grandes atropelos. Ultimamente, esta parece ser a única personalidade que enxergam em mim: as doenças que eu tenho e a morte que posso ter.

Café tomado no horário, aviso à Maria, minha cuidadora, que vou caminhar na orla, um direito conquistado depois de muita insistência e teimosia da minha parte. Maria só me avisa para tomar cuidado e me relembra de não ir muito longe, como faz todos os dias. Todo mundo está sempre me relembrando coisas, como se eu estivesse perigosamente a ponto de esquecer tudo. Afinal, quem sabe o Alzheimer também já não está se juntando ao meu arsenal de enfermidades ? Nunca se sabe. Mas não posso culpar Maria, é o seu trabalho e ela faz o melhor que pode.

Depois do elevador, chego à portaria e, após os cumprimentos, ouço do porteiro: "não vá muito longe, seu Hamilton". Como Maria, ele também repete todos os dias. Esse é um dos meus mantras, que escuto costumeiramente de bocas alheias. O engraçado é que quase todos têm a palavra "não" em algum lugar. Na verdade, não me aborrece que as pessoas se preocupem comigo e queiram cuidar de mim. Quem não gosta de ter atenção e ser cuidado ? O que me entristece é que ninguém acredita que também posso fazer o mesmo por mim. E mais além, que também posso cuidá-los, protegê-los e tratar as suas dores, de corpo e sentimento, se precisarem. Sei que preciso deles e quero que também precisem de mim.

Na praia, há mais areias, pedras, cerâmicas e menos mar. Até desisti de dar minhas escapulidas para a água para molhar as pernas, já que o mar está lá bem mais distante. Fora isso, nada tão diferente: barracas de água de coco, caminhantes, ciclistas e desabrigados que se recolhem nas sombras dos espigões para dormir. É assim: estendem seus panos a favor do vento, que os empurra adiante e assim constroem seus tetos, onde podem deitar-se na sombra que se forma.

Todos os dias, caminho um pouco mais adiante, até onde meu corpo me permite ir. Estranhamente, apesar de todos sempre me avisarem para não ir muito longe, nunca percebem quando demoro um tempo a mais. Outro dia, fiquei quase 2h só jogando conversa fora depois da caminhada e, quando retornei ao prédio, ninguém demonstrou o menor sinal de preocupação. Me proíbem de ir muito longe, mas se vou, nem se dão conta. Assim como não percebem quando quero conversar, que fiquem um tempo a mais em minha companhia e que esta não lhes pareça um fardo, que viessem morar comigo, que minha família voltasse a ser minha. O ditado diz que a gente cria filho para o mundo, mas não revela que entre os pais, o mundo e os filhos que saem do ninho, há um abismo de esquecimento.

Há alguns dias, conforme fui andando mais adiante, comecei a enxergar o edifício São Pedro. Sempre quis entrar lá, ainda vivi os seus dias de glória, onde a alta sociedade se reunia em bailes e convenções e onde personalidades do Brasil e do mundo se hospedavam. Passava todos os dias em frente no meu trajeto trabalho-casa. Mas, só agora que o revejo, começo a senti-lo mais próximo de mim, como se houvesse entre nós semelhanças íntimas, segredos compartilhados em pura cumplicidade. Só aí começo a me dar conta de que hoje, nós somos iguais. Ambos já fomos objetos de desejo, curiosidade e fomos bem-cuidados para além da superfície. Antigamente, faziam questão de me abraçar, me ouvir, requisitavam o que eu sabia para resolver seus problemas e angústias. O São Pedro e eu éramos partes fundamentais das vidas das pessoas. Hoje, somos só parte de uma memória que tentam a todo custo apagar, destruir. É doloroso saber que, a qualquer momento, ele ou eu podemos deixar de existir e ninguém vai dar muita falta, alguns lamentarão aqui e ali, mas poucas lágrimas serão derramadas, se é que serão. Por isso, decido entrar pela primeira vez no São Pedro.

Como ninguém presta atenção nele ou em mim, ninguém me vê entrar. Há muito entulho, ferrugem, musgo e bitucas de cigarros espalhadas. Contudo, sua majestade ainda se faz sentir. Há uma aura a emanar respeito e avisar que ali estão guardadas as histórias de muitas pessoas. Me deixo demorar, percorro os quartos e salões tentando imaginar como eram em seu auge, quantos ali dançaram, quantos ali dormiram, quantos ali se embebedaram, quantos ali amaram. Cada um que ali passou e deixou parte de sua vida como parte da construção daquele lugar. Agora, por falta de vida, ele está prestes a ruir. No entanto, não sem que antes eu dê a minha contribuição, quero entrelaçar meu destino ao seu.

Sem pressa e parando para acalmar a dores nas pernas, subo as escadas até o último andar. Vou até a janela e abro os braços. Sinto as forças nas minhas pernas recobrarem e piso firme no chão. Depois, pulo colocando força pra baixo, de encontro ao chão. E me lembro do meu filho, que não me deixou ir ao seu casamento porque acreditava que eu não teria forças para dançar ou ficar em pé durante a cerimônia, que era melhor eu me resguardar e ficar em casa mesmo. Nem sei se ele de fato acreditava nisso, mas agora já não importa. Pulo, danço. Vê, filho, ainda posso dançar ! Vê, meu neto, o vovô pode pular com você ! O prédio começa a estremecer e consigo ouvir algumas de suas partes se rompendo quase que silenciosamente. Vê, filha, ainda posso escutar, não precisa gritar ! E continuo: danço, pulo, bato o pé no chão. Da janela, vejo que já existe movimento em volta, se reúnem para ver o São Pedro. Não sei se conseguem me ver, mas não tem importância. Só me importa agora é que, uma última vez, estamos provando ainda sermos dignos de atenção. Não aquela que só vê a fachada, mas aquela que olha pra dentro, que enxerga a história, o sentimento, que atribui valor. Que se quer preservar, que se quer conhecer. Somos importantes sim, meu velho São Pedro. Não nos conformemos ao abandono silencioso. Não vamos deixar que nos derrubem pouco a pouco, para que continuem a não nos notar até que um dia a gente desapareça de vez. Vamos fazer um grande estrondo, um último espetáculo. Danço, pulo, bato o pé no chão e o sinto sumir. Depois, tudo escuro.

Agora, só há ruínas de nós dois. Duas histórias encerradas bem na Beira-Mar de Fortaleza. Ausências consentidas e já esperadas, mas que no derradeiro instante se rebelaram. Um dia, quando a cidade voltar a ser mar, nossas ruínas se afogarão juntas.

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