A pouco mais de um mês do começo do período de campanha eleitoral, ainda há uma série de incertezas quanto a como o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) colocará em prática as novas regras sobre desinformação para as eleições de 2024 e também em relação a como elas deverão impactar a moderação de conteúdo das redes sociais.
De um lado, do que foi divulgado até o momento, ficam dúvidas acerca de como o tribunal atuará para colocar em prática suas próprias regras, em desenho que inclui um novo centro.
De outro, a falta de clareza de parte do regramento mais duro contra as redes sociais e a mudança de gestão do tribunal têm alimentado um debate sobre qual será a interpretação da corte ao aplicá-lo.
Resolução aprovada pelo TSE neste ano previu que as plataformas podem ser responsabilizadas caso não removam "imediatamente" certas categorias de conteúdo, como discurso de ódio e desinformação contra o processo eleitoral.
Diante da lacuna sobre o gatilho para essa possível responsabilização, tem havido uma linha de defesa no debate do assunto para que ela seja completada com o que prevê o Marco Civil da Internet, ou seja, de que a responsabilização poderia ocorrer apenas após decisão judicial –entendimentos contrários seriam, por exemplo, depois da própria publicação do post, de uma denúncia de usuário ou notificação extrajudicial.
A expectativa de uma eventual leitura nessa linha é impulsionada pelo contexto da troca da presidência do tribunal, que passou do ministro Alexandre de Moraes para a ministra Cármen Lúcia em junho. Apesar disso, só se deve ter uma resposta concreta à medida que processos sobre o tema cheguem à corte.
Um fator extra que pode alterar o cenário é um eventual julgamento sobre a constitucionalidade do Marco Civil pelo STF (Supremo Tribunal Federal), o que pode ocorrer ainda este ano, como sinalizou recentemente o presidente da corte, Luís Roberto Barroso.
Entre os pontos que têm gerado preocupação para representantes de organizações da sociedade civil ouvidos pela Folha, estão a insegurança jurídica sobre o assunto e a possibilidade de que juízes eleitorais pelo país tenham diferentes entendimentos sobre a regra.
E também quanto ao impacto que ela pode ter na atividade de moderação de conteúdo das empresas.
"Para a gente, [o que é] esse "imediata" não está qualificado na resolução. Portanto, ele tem que ser lido necessariamente à luz da lei. E a lei no caso é o artigo 19 do Marco Civil", diz André Boselli, coordenador de ecossistemas de informação da ONG Artigo 19.
"Essa é a interpretação fria. Na prática, existe um cenário de incerteza, não dá para saber exatamente como o TSE vai interpretar isso", afirma.
"O primeiro ponto de contato da Justiça vão ser os juízes eleitorais que estão distribuídos por todo o Brasil e, nesse sentido, era muito importante que a resolução fosse mais clara possível, para que a gente pudesse ter uma segurança jurídica e uma uniformidade nas decisões", diz Camila Tsuzuki, coordenadora de operações do Instituto Vero.
Questionado pela reportagem, o TSE não respondeu quanto à interpretação do artigo e se haverá alguma comunicação aos tribunais regionais a respeito.
Outro aspecto que tem provocado apreensão é a previsão de uma triagem de denúncias de desinformação por servidores no âmbito do Ciedde (Centro Integrado de
Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia), criado em março por Moraes e cujo manual de procedimentos foi publicado dias antes de o ministro deixar a corte.
Em um site do tribunal, qualquer cidadão poderá enviar alertas sobre suposta desinformação em redes sociais. Segundo o manual, antes do envio para as plataformas, uma equipe irá analisar se eles estão dentro do escopo do centro e, em caso de indício de crime, também irão comunicar o Ministério Público e a Polícia Federal.
Para além das dúvidas sobre a viabilidade do próprio sistema diante do volume potencial de denúncias em uma eleição municipal, os entrevistados questionam a natureza da tarefa que estaria sendo desempenhada por servidores fora da atuação judicial do tribunal.
Paloma Rocillo, diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, vê com preocupação e ressalvas o processo de triagem e diz haver uma lacuna de informações a respeito.
"Se a gente está falando de um procedimento que não é judicial, a gente precisa ter ainda mais transparência e publicidade, e conhecer os critérios que serão aplicados para não ter um abuso de poder por servidores ou por outros agentes."
A Folha fez perguntas ao TSE quanto à quantidade de servidores que desempenharão as atividades previstas no manual do Ciedde, além de seus cargos, perfil de formação e se estariam passando por algum tipo de treinamento, mas não houve resposta a respeito.
Segundo o tribunal, a primeira reunião da nova presidente com representantes das instituições públicas parceiras do centro ocorreu em 3 de julho.
O cenário geral no tribunal em medidas relacionadas ao programa de desinformação é de demora, dada a proximidade do período em que a propaganda eleitoral é permitida: 16 de agosto.
Apesar de a ministra ter tomado posse em 3 de junho, o novo assessor-chefe do setor de combate à desinformação só foi nomeado semanas mais tarde, em 27 de junho.
Entre os pontos que a gestão de Moraes deixou pendentes está o andamento das negociações com as plataformas para a assinatura de acordos de cooperação –firmados em fevereiro no pleito de 2022.
A reportagem tampouco identificou, para as eleições de 2024, a publicação do plano estratégico do programa de enfrentamento à desinformação do TSE, medida prevista em portaria que criou o programa. Questionada a respeito, a corte não respondeu.
O planejamento para 2022, sob a gestão do ministro Edson Fachin, estava disponível ao menos desde março daquele ano.
Em nota, o TSE informou que o Ciedde deve entrar em funcionamento apenas "mais próximo das eleições". Disse ainda que o foco de ação imediato da ministra após a posse foi o diálogo com os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) "para tomar conhecimento das urgências e demandas" para a realização segura do pleito.