A Câmara Municipal de São Paulo, por iniciativa do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), decidiu abrir, em fevereiro, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar instituições que atuam em favor de populações vulneráveis em São Paulo. O vereador afirmou que o Padre Júlio Lancelotti será foco de investigação e deverá ser um dos primeiros convocados a depor. Salta aos olhos que o poder público da capital paulista, completamente incapaz de sanar a catástrofe social que atinge a cidade com o aumento da população em situação de rua, persiga aqueles que, por meio da solidariedade, garantem o mínimo de dignidade para essas pessoas.
O Padre Júlio Lancelotti tem um trabalho de décadas acolhendo, alimentando e protegendo pessoas marginalizadas e miseráveis. Assim o fez com pessoas vítimas de HIV quando a pandemia do vírus estourou na década de 80 e continua a fazer com moradores de ruas e famintos em geral que necessitam de amparos. Suas ações são variadas, que vão desde o simples acolhimento através de escuta e bençãos, até ações práticas de mitigação dos efeitos da miséria, como distribuição de quentinhas, cobertores, roupas, mantimentos e abrigos. Uma das fotos mais emblemáticas de sua atuação é o retrato de quando ele, sozinho e munido de uma marreta, quebrava pedregulhos instalados debaixo de pontes e viadutos, ali colocados para que pessoas em situação de rua se estabelecessem. Pedregulhos implantados pelo poder público municipal, diga-se de passagem.
O Padre Júlio entende o amor como uma ação e é fundado nessa concepção que baseia sua luta por justiça social e a defesa das populações vulneráveis. Por isso, seu trabalho e a perseguição imposta a ele me recordam uma das melhores leituras que fiz ano passado, do livro "Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas", da escritora, professora e ativista feminista e antirracista estadunidense bell hooks. Numa das passagens do livro, a autora afirma:
"O desejo de se sacrificar em favor dos outros, sempre presente onde há amor, é aniquilado pela ganância. Sem dúvidas isso explica a disposição dos Estados Unidos de privar os cidadãos pobres de serviços sociais bancados pelo governo enquanto enormes somas de dinheiro abastecem a crescente cultura do imperialismo violento. Os profetas que lucram com a ganância nunca estão satisfeitos; para este país, não é o bastante ser consumido por uma política gananciosa: ela precisa se tornar o modo de vida natural em escala global. A generosidade e a caridade militam contra a proliferação da avareza, seja na forma de uma gentileza para um vizinho, criando-se um sistema progressivo de distribuição de trabalho, seja apoiando programas de bem-estar social financiados pelo Estado."
Portanto, a perseguição sofrida por padre Júlio é, sobretudo, uma perseguição aos ideais encarnados por ele, de solidariedade, comunhão, acolhimento e de uma sociedade onde se é possível partilhar bens de maneira pacífica, contrapondo a lógica de uma organização social de competição exacerbada, de todos contra todos, com laços sociais esgarçados e onde a exploração é prática comum, estimulada e bem aceita. A luta e o trabalho do padre Júlio são uma barreira necessária onde podem permanecer todos aqueles que teimam em acreditar numa sociedade em que ninguém pode passar fome e todos, sem distinção, podem trabalhar, morar e viver com dignidade.
É estarrecedor, mas não surpreendente, que a perseguição contra o padre Júlio venha justamente daqueles que, aliados ao candidato a presidente derrotado em 2022, passaram a campanha afirmando que uma eventual vitória de Lula e do PT poderia desencadear em fechamento de igrejas e criminalização de líderes religiosos. Vejam só, estamos em 2024 e o governo Lula não fechou nenhuma igreja, tampouco perseguiu qualquer liderança religiosa e o único líder religioso a quem o poder político ameaça investigar, encabeçado pela extrema-direita e seus próceres, é o padre Júlio Lancelotti.
Protejam o padre Júlio Lancelotti.