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Artigo

Rapunzel de rastafári não é africanidade


Era uma vez uma princesa chamada Rapunzel. Ela tinha longos cabelos lisos cor de ouro. Um dia, Rapunzel decidiu ir a um salão de beleza e colocou rastafári. Depois, fez black power. Depois, fez tranças nagô. Depois, colocou turbante afro. E viveu confusa para sempre em terras europeias. Essa hipotética e breve releitura da história de Rapunzel não constitui um caso de confusão, mas, sim, de apropriação. Os milenares penteados e adornos de cabeça guardam significados de natureza cultural, identitária, religiosa, ritualística e étnica para os povos africanos. Com o tempo, as tranças nagôs, por exemplo, foram usadas como elementos nos protocolos de guerra e até como linguagem estratégica na luta pela liberdade; o desenho do trançado poderia representar mapas indicando rotas de fuga. E nem Rapunzel e nem ninguém têm o direito de reduzir tantos símbolos de ancestralidade a simples opção estética.

Mas a princesa europeia que decide se africanizar parece-me ser algo cada vez mais plausível por aí. Nas minhas passagens por escolas de educação básica, observo muitos murais com trabalhos pedagógicos envolvendo Branca de Neve preta, A Pequena Sereia negra, Cinderela de cabelo crespo, isso e aquilo. É como se a indústria do livro e do entretenimento e a escola, sem refletir, estivessem abrindo uma concessão, fazendo uma espécie de favor ao recontextualizar os clássicos europeus agora numa variante africana.Ocorre que a África tem as próprias histórias e seus mitos fundadores. E são essas histórias que o mundo precisa conhecer. Não quero sugerir que deixemos de ler essas histórias de princesas, fadas, bruxas e gnomos que nos fascinam há muito tempo. Elas são, de fato, encantadoras. Meu argumento é que passou da hora de conhecermos outras histórias igualmente lindas, formidáveis e fantásticas que marcam a visão de mundo e a cultura dos povos africanos. Então, viremos a página.

Que tal contarmos para as crianças e para nós adultos também histórias sobre a insuportável solidão de Olorum, os destinos de amor guiados por Oxé, as possíveis prosperidades inspiradas em Obará e outras tantas memórias, narrativas, lendas e fábulas? Presumiríamos como o mundo surge miticamente, de onde viemos e para onde vamos na cosmovisão de outros povos, e não apenas na perspectiva dos mesmos que tentam traçar nossas compreensões há séculos. Participaríamos de histórias de guerra, com heroínas diversas das que esperam seus príncipes em cavalos brancos, que se prostram adormecidas à espera de um beijo ou que não resistem ao vermelho da maçã. Provaríamos outras frutas, outros sabores, outros venenos, outras magias, outras maldades, outras fantasias, outras formas de expressão do amor, do ódio, do bem, do mal. Conheceríamos outras princesas e príncipes, rainhas e reis diferentes, conforme outras cosmovisões, outros valores civilizatórios e outros conceitos de humanidade.

Certa vez, conversando sobre tudo isso numa escola, fui questionado por uma professora se, ao sugerir histórias como as de Olorum, Oxé e Obará, eu não estaria desafiando o Estado laico. Eu respondi perguntando se a professora via algum problema em contar, por exemplo, a história de Thor para as crianças na escola. Ela me respondeu que não. A professora não sabia que Thor é um deus pagão. Como Thor é nórdico, branco e já foi transformado num super-herói de olhos azuis no cinema e nos quadrinhos, ele, mesmo sendo uma divindade para alguns povos, não causa espanto e não põe em jogo o Estado laico. É a negritude que incomoda.

Mesmo não acreditando que a literatura tenha uma finalidade meramente didática, é possível aprendermos com a aceitação de outras propostas estéticas, uma vez que elas nunca estão dissociadas do conjunto de saberes, práticas, crenças e valores das sociedades onde se originam. Eu defendo que não precisamos tomar de empréstimo, por exemplo, as histórias originárias do folclore europeu, convertidas em sucesso mundial pelos estúdios Disney, e passar nelas uma tinta preta numa atitude benevolente de se trazer a África para os livros e para as escolas. Queremos que os princípios e os fundamentos culturais do continente africano povoem verdadeiramente as narrativas, a música, o cinema, o teatro e toda e qualquer expressão cultural. Não é mais tempo de exclusividade. É tempo de respeito e de diversidade.


Por: André Lúcio Bento - Doutor em linguística, especialista em cultura afro-brasileira e professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal

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